O que ficou do que foi

O que ficou do que foi Isu? Quase nada.
Foi rei da oitava dinastia – das trinta e uma que o Império egípcio teve – num período de crise há mais de quatro mil e cem anos atrás, para quem se interessa por estas coisas. Por alguma razão, os seus inimigos empenharam-se em fazê-lo desaparecer. Este “desaparecer” não é um eufemismo para “matar”, porque Isu morreria (como todos nós) mais cedo ou mais tarde. “Desaparecer” implicou riscar, rasurar até se conseguir apagar o seu nome. Ao eliminar «Isu» da base de uma estátua, aquele bloco de pedra tornou-se num enorme monumento ao anonimato. Então o que ficou do que foi Isu? Apenas um frágil grafito numa parede, que por sobreviver deu a imortalidade a um homem sobre o qual não sabemos mais do que aquilo que aqui foi dito.

O impulso de tornar perpétua a nossa memória está tão evidente hoje, como há mais de quatro mil e cem anos atrás: vamos evitando, com pequenas práticas, o dia do nosso desvanecimento. “Escrever um livro, ter um filho e plantar uma árvore” é um preceito que ouvimos com frequência e que nos coloca em sintonia com o medo ancestral da finitude. Em termos de intenção um “o Cajó esteve aqui” vale tanto como uma estátua de Napoleão, um “Marco ama Soraia” tanto como o “Tristão e Isolda”, um “viva o Benfica” tanto como um arco triunfal e um álbum de fotografias de família pode ser aberto com a mesma solenidade e utilidade que a “Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal”.
Tentamos desafiar a mortalidade iludindo Chronos, um deus do Tempo tão impiedoso que foi capaz de comer o seu próprio filho.

E assim, em dias especiais, continuamos com este ritual. O álbum de família raramente é visto solitariamente. Para cumprir a sua função é necessário identificar os mortos e os vivos para que os seus nomes não desapareçam, associar histórias a cada uma das fotografias para que sejam lembrados e ensinar os mais novos para que a memória se perpetue. Estes objectos, outrora tão comuns, sustentavam as raízes de uma árvore genealógica que – de geração em geração – era podada pelo esquecimento: “não sei o nome desta senhora ao lado da tua avó”.

As imagens de “O Que Ficou Do Que Foi” foram podadas e transplantadas. Olhamos para as figuras representadas e não as reconhecemos, mas identificamos as poses: a forma como querem ser lembradas inunda-as de majestade solene.
Carla Cabanas volta a invocar a imprecisão volátil da memória (tem sido esse o mote das suas últimas séries), desta vez através do apagamento e da rasura de imagens que encontrou e coleccionou. Cada retratado vai desvanecendo entre cada risco, tal como Isu há mais de quatro mil e cem anos atrás. Forma e fundo fundem-se até não ser possível que cumpram a sua tarefa de eternizar um nome. São monumentos ao anonimato.
A emulsão fotográfica arrancada – que se acumula no fundo da moldura – é o que sobra depois de eliminadas informações sobre espaços, contextos e personagens. Tal como nós os eliminamos involuntariamente da nossa história pessoal, até que estes não sejam mais que cinzas e pó de outros tempos. “Porquanto és pó e em pó te tornarás”.

Valter Ventura
para a exposição/catálogo “O Que Ficou Do Que Foi”
Carla Cabanas
Lisboa, 2012

What Remains of What It Was

What remains of who Isu was? Almost nothing.
For those who care about this kind of things, he was king of the eight dynasty – of the Egytian empire’s 31 dynasties – in a time of crisis, over four thousand one hundred years ago. For some reason, his enemies were deeply committed to making him disappear. “Disappear”, notwithstanding, is not here a euphemism for “death”, because Isu would die (as we all will) sooner or later. “Disappear” meant to cross out, to scratch off his name until it was fully erased. By eliminating «Isu» from a statue pedestal, that large piece of stone became a huge monument to anonymity. What remains of who Isu was? Just a feeble graffito on a wall that, merely for having endured, granted immortality to a man we know nothing about that could add to what was so far stated here.

Our drive to perpetuate memory is as strong today as it was over four thousand one hundred years ago: we go by trying to avoid, with small gestures, the day of our disappearance. “Write a book, have a child, plant a tree”, is a meme we hear constantly and that puts us in tune with the ancient fear of finitude. As far as intention goes, a “Cajó was here” is equivalent to a bust of Napoleon, as a “Marco loves Soraia” is to Tristan and Isolde, a “Benfica rules” is to an arch of triumph and a family photo album can be browsed with the same solemnity and usefulness as the “Chronicles of the First Seven Kings of Portugal”. We try to defy mortality by eluding Chronos, a god of time so merciless that he ate his own son.

And so, in special days, we continue this ritual. The family photo album is rarely visited in solitude. For the album to fulfil its mission one needs to identify living and dead alike so their names don’t fade away, to attach a story to each photo so that they can be remembered, and to teach the young so that memory can perpetuate. These objects, so common in the old days, sustained the roots of a family tree that – from one generation to the next – was to be pruned by forgetfulness: “I don’t know who the lady next to your grandma is.”

The images in "What Remains of What It Was" were pruned and transplanted. We look at those people portrayed and we do not recognize them, but we do identify their poses: the way they want to be remembered fills them with solemn majesty.
Once again, Carla Cabanas evokes memory’s volatile imprecision (this has been the subject of her previous series), this time by erasing and damaging images she has found and collected. Each portrayed figure is fading away in each scratch, just like Isu did, four thousand one hundred years ago. Shape and background merge until they can no longer fulfil their task of perpetuating a name. The photographic emulsion ripped off – accumulating at the bottom of the frame – is what remains after the information on places, contexts and characters has been eliminated. Just as we unknowingly eliminate them from our personal history, until they are nothing more than ashes and dust from times past. “For dust thou art, and unto dust shalt thou return".

Valter Ventura
for the exhibition/catalogue “What Remains of What It Was”
Carla Cabanas
Lisbon, 2012

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